segunda-feira, 6 de outubro de 2014

09-06-2013 - 4 dia - Los Arcos a Logrono

Mapa de Altimetria:



Locais visitados hoje:

140 km - Sansol 

141 km - Torres Del Rio - Igreja Octogonal del Santo Sepulcro


152 km - Viana - Catedral gótica de Santa Maria, do séc. XIII. 

161 km - Logroño - Catedral bonita. 

Diário de bike


Dormi uma noite toda! Os peregrinos acordam e saem às 6h, por isso, mesmo que você não tenha a intenção de acordar neste horário acabará acordando, devido ao barulho. Hoje estou sozinha no quarto, acordo naturalmente, olho no relógio e nem acredito. Eram 8h! Devo ter dormido umas 12 horas. Abro a porta do quarto e percebo que não há mais ninguém aqui (peregrinos). Tem apenas dois funcionários limpando os alojamentos. Eles se assustam com minha presença, pois não tinham percebido que havia mais alguém. Me perguntam se quero mais uma diária, afinal, o check-out deveria ter sido às 8h. Abaixo a cabeça e digo que não sei... Desço as escadas e confiro o tempo lá fora... chuva e frio. Sento-me na sala, próximo da lareira, agora apagada, e olho para o infinito através da janela... com aquele olhar de quem nada pensa. De repente, sou interrompida e trazida de volta a realidade, por uma pergunta: 'Você está bem?' Olho para o rapaz e percebo que ainda não o conheço. Abaixo a cabeça e respondo: 'Não sei'. 'Qual é o problema?', ele me pergunta. Explico que passei muito mal com o frio e chuva de ontem e, por isso, estou com medo de sair. Ele me puxa pelo braço e pede para segui-lo. Não sei o que está acontecendo, mas por alguma razão, decido ir para entender. Ele me leva até um quarto, abre um guarda-roupa, aponta para dentro e pede-me para escolher. Estou confusa... será que ele quer me vender? Olho para ele e digo que não compreendi. Ele se vira, começa a pegar peças de roupa e coloca em minhas mãos. Me passa uma capa de chuva com touca, calça de chuva e um protetor para os pés. Continuo parada a sua frente, segurando tudo e olhando para ele. Ao final ele se vira e pergunta: 'Acha que vai te servir?' Olho melhor para as peças e faço um 'sim' com a cabeça... mas continuo sem reação. Peço que ele me explique melhor o que está acontecendo. Então ele me diz: "Os peregrinos chegam aqui com muitas coisas na mochila e vão descobrindo que, muitas vezes, estão só fazendo peso. Não estou te vendendo nada, estou te presenteando, para que não desista do caminho por este motivo!" Fico estática... não consigo falar, pensar ou agir. Sinto meus olhos se umedecerem rápido demais e uma lágrima cai. Ele sorri e diz: "Buen Camiño!" Vira as costas e sai. Não sei explicar o que senti... Acho que continuei ali, travada, por alguns minutos, olhando para aquelas peças de roupa em minhas mãos. Depois, volto para o quarto, coloco toda aquela roupa e desço para arrumar as coisas na bike. Antes de sair, volto para agradecer meu mais novo 'anjo amigo'... mas não o encontro. Vejo aquela moça boliviana e pergunto sobre ele, mas ela responde que não o viu hoje. Dou um abraço bem forte nela e peço para dizer a ele que foi um verdadeiro anjo para mim... e que não vou desistir! Ao subir na bike, olho para trás e vejo meu anjo na janela, acenando e sorrindo para mim. Aceno de volta e começo a pedalar. Segue uma foto do 'melhor' albergue que fiquei no caminho:





Agora não há mais desculpas, sou só sorrisos! Olho para os lados e digo 'Buen Camiño' até para as pedras. Vejo uma padaria e paro comprar um pão... hoje não vou passar fome! Subo na bike e continuo pedalando. Lembro-me das minhas queridas amigas de ontem a noite. Não perguntei o nome delas... como pude me esquecer? Além disso, queria muito me despedir delas. Mas imagino que, se eu pedalar muito, quem sabe consigo passar por elas no caminho. Não me peça maiores explicações, quando viro a primeira esquina chegando em frente a igreja de Los Arcos, dou de 'cara' com elas.  Dei um berro quando as vi, deixei a bike e fui abraçá-las. Tenho a sensação de que elas me aguardavam por ali. Embora meu inglês seja terrível, elas entendiam muito além do que minhas palavras seriam capazes de expressar. Ganho muitos abraços e carinho. Depois disso, fazemos algumas fotos: 



Minha amiga alemã vai até uma lojinha ali perto e volta com uma pulseirinha verde. Ela me diz que adora esta cor e sempre está vestida com alguma peça de roupa verde. Digo-a que, devido a isso, sempre me lembrarei dela como meu 'anjo verde' e ela vibra com a ideia. Ela me ajuda a colocar a pulseira e 'elas' (pulseira e anjo) me acompanham durante todos os outros dias do caminho. Dou até um apelido para 'elas': 'pulseirinha da felicidade', pois toda vez que olhava para ela eu sorria. 



Me despeço delas, faço uma fotos da igreja e saio pelo portal da cidade: 



E PARA MIM, O CAMIÑO FELIZ DE SANTIAGO COMEÇOU HOJE, 
AQUI EM LOS ARCOS...


A chuva parou, não tenho mais frio e agora as músicas do Lulu Santos, que estou ouvindo no meu ipod, me divertem muito: 

"Já não tenho dedos pra contar, de quantos barrancos despenquei e quantos rastros de destruição eu já deixei"... "Eu não pedi pra nascer, eu não pedi pra perder, nem vou sobrar de vítima, das circunstâncias... as vezes me sinto uma bala perdida... agente vai a luta e e conhece a dor..." 

Eu cantava alto e os peregrinos riam quando eu passava dançando e cantando  sobre a bike. Meu velocímetro voltou a funcionar e compro uma nova credencial em Torres del Rio, afinal, a minha ficou com meus colegas. A credencial ajuda a me orientar, tipo, quantos quilômetros faltam para chegar em cada lugar e me divirto pegando os carimbos por onde estou passando.

Quando entro em uma longa reta, me sobra tempo para pensar em tudo o que aconteceu. Concluo que o amor cura tudo! Quantas vezes não observamos pessoas iradas, com raiva de alguma coisa ou ódio de alguém e simplesmente 'julgamos' a pessoa e a desprezamos. A Bíblia nos diz que, 'uma palavra quando branda, faz recuar o furor' e que 'Poderíamos ter tudo na vida, mas sem amor, nada seríamos...' Nestes dois últimos dias, vivenciei tudo isso e a minha gratidão, vai muito além do tamanho de nosso universo. Começo a pensar no dia 'ruim' de ontem, em tudo o que deu errado e chego a uma conclusão fantástica! Descubro exatamente o porque tudo deu errado. Quando temos uma meta ou objetivo, eles devem estar baseados em sentimentos bons. O que me impeliu sair daquele albergue, em Zariquiegui, foram os seguintes sentimentos:
  • Ego - Meus colegas não queriam me esperar, pois achavam que eu não iria conseguir chegar no final. Eles planejaram esta viagem por mais de dois anos e minha presença ali, não fazia parte deste planejamento. Eles decidiram não deixar nada nem ninguém atrapalhar isso. Por esta razão, para mim, chegar a Logroño era uma questão de 'honra'. Queria olhar nos olhos deles, pegar minha credencial e dizer que continuaria sozinha. Agora eu penso... para que?!? Ter perdido de visitar a Bodega de Irache ou Pablito, foi meu castigo por querer alimentar este 'ego' e nunca mais vou esquecer disso! Além disso, sair do caminho para visitar a Igreja Eunate, andando 5 km a mais por isso, foi para provar que eu estava vendo e 'aproveitando' tudo do caminho. Logo na sequência, me engasguei e quase morri. Porque? O caminho já tinha as dificuldades suficientes para eu incluir outras... 
  • Raiva e Ódio - ontem, pedalei o tempo todo repassando o dia anterior, culpando meus colegas por tudo. E a cada novo acontecimento os culpava novamente. Recebi vários 'presentinhos' por esta minha atitude - minha câmera quebrou, passei fome e quase morri de frio. 

Todos nós conhecemos mais ou menos o funcionamento de uma bússola. Este item de navegação possui uma agulha que, normalmente, apontará na direção norte. Ela faz isso por estar sendo atraída a diversas forças magnéticas presentes no centro da terra. No entanto, se você conseguir chegar exatamente ao norte (Pólo Norte), no local para onde a força está sendo atraída, a agulha vai girar desordenadamente sem parar. Nossa mente funciona assim. Temos que ter um 'norte' para seguir. No entanto, se esta força de atração for negativa (raiva / ódio), estaremos no ponto zero da força magnética e ficaremos cegos, sem orientação. Para continuar meu caminho em paz, tive de tomar uma decisão. Certa vez, alguém me disse que sempre teremos duas opções quando formos magoados. A primeira é perdoar e a segunda é esquecer. Por isso, hoje eu tomo a minha decisão: Vou esquecer tudo que aconteceu! Simples assim... em muitos outros momentos do dia, minha mente quis lembrar... mas eu ordenava a ela: 'Chega! Chega de gastar energia positiva com coisas negativas... anda lá, próximo pensamento...' . E funcionou! 

Continuei pelo caminho, apreciando cada pequeno detalhe que via e agradecendo a tudo e todos:


Agradeço o sol!


Agradeço as orientações para o caminho!


Agradeço a beleza das flores!

Agradeço pela chuva!

Agradeço pelas paisagens...



Cheguei a Viana. Como a cidade é linda! Muito medieval, muito turística... um lugar realmente marcante do caminho!









Encontrei aqui meu querido amigo, que compartilhou o feijão comigo ontem... fiquei tão feliz de reencontrá-lo, abracei a ele,  me desejou um 'Buen Camiño' e parti. Pena que não tirei uma foto dele :(

O caminho não estava exatamente mais fácil... mas eu estava bem, muito bem! Hoje eu tive a certeza de que eu poderia conseguir ir até o final. 




Lembram-se que falei sobre a divisão em províncias? Pois é, estou em outra província e, à partir de agora, é muitoooo vinho de 'La Rioja', um vinho magnífico! Idealizo provar um ainda hoje.


Neste ponto do caminho, começo pensar em minhas queridas amigas alemãs. Poxa vida! As vi novamente hoje cedo e não lembrei de perguntar os nomes delas... deixei meu cartão, quem sabe um dia elas me mandarão um e-mail. Isso começou a 'martelar' em minha mente. Não me perdoo por esta falha... coisas que não se explicam (principalmente por aqui), faço uma curva, uma descida eeee as encontro novamente fazendo o caminho inverso, vindo por isso em minha direção!!!! Não acredito no que estou vendo.... será uma miragem???? Dou um berro e solto aquela gargalhada que vem lá de dentro! 


O que fazem aqui??? Como chegaram tão rápido??? "Acordamos cansadas e decidimos pegar um ônibus até aqui. Estamos fazendo o caminho na direção contrária para passear um pouco"... rimos muito. Digo a elas: "Antes que eu me esqueça novamente, preciso saber algo de extrema importância!" Elas me olham muito sérias e ficam aguardando a pergunta: 'Qual é o nome de vocês?' Elas dão risada e respiram mais tranquila. Minha querida amiga de verde chama-se Bárbara Claudia (ai que linda, minha xará) e a de vermelho chama-se Martina Corazon. Olho para o velocímetro e percebo que estou longe de completar a quilometragem proposta para hoje. Caso contrário, ficaria mais um dia com elas... Então, me despeço delas e sigo em frente. Quando volto a pedalar,  começo avaliar um novo dilema: 'O que é o caminho? É a quilometragem ou é as amizades que vamos fazendo pelo percurso?' Faço uma longa descida pensando nisso e quando termino, paro a bike e sinto uma voz dizendo para ficar... Mas meu senso de 'responsabilidade' quer concluir o caminho e me manda seguir em frente. Sem a menor explicação, vou atravessar uma rua asfaltada e vejo uma  pequena 'poça' d'água, que escondia uma pequena cratera. Assim que passo sobre ela caio no meio da rua. Olho em volta, levanto e sinto que foi uma resposta do que deveria fazer.... vou ficar aqui! Dane-se a quilometragem! Hoje, vou me divertir com minhas amigas alemãs. Dou meia volta e subo para comunicá-las sobre minha decisão. Quando as reencontro, pergunto onde estão instaladas, pois decidi ficar. Elas me dão uma péssima notícia. Hoje há uma festa na cidade e, por esta razão, todos os albergues encontram-se lotados. Isso foi um 'banho de água fria'... me despeço pela quarta vez, de minhas amigas, e decido entrar na cidade para conferir como será esta festa. 


Olha a 'limpeza' da bike















Que lindo!! Que vontade de ficar e ver a festa. Quando viro a bike para voltar ao caminho, encontro Barbara novamente. Ela me pergunta: 'Vamos tentar achar um lugar para você ficar? Eu te ajudo!' Saímos procurando e depois de algum tempo me lembrei do guia bicigrino que carregava em meu alforge. Achamos um albergue que não fica tão centralizado. Quando chegamos lá, o senhor da recepção nos dá a boa notícia, que há vagas. Vibramos muito com isso! Marcamos de nos encontrar em frente a Igreja Matriz, às 18 hrs. 

Temos uma noite agradabilíssima! Assistimos uma apresentação teatral na praça da cidade (não entendemos absolutamente nada, mas foi lindo mesmo assim).  Depois fomos visitar todas as barraquinhas, comemos uns lanches maravilhosos e conversamos muito (um pouco em inglês e muitas mímicas). Veja algumas fotos:















Não me arrependo nada em ter ficado, foi a melhor noite que tive no caminho!

Volto para o albergue e aproveito para fazer mais uma foto em um prédio lindíssimo!






Quando chego, sento-me na sala para conversar com o Filipe, que percebe rapidinho que estou muito melhor! Logo em seguida, passa atrás de mim uma moça loira, que com a maior 'cara de pau' dá um 'oi' para o Filipe, no skype, e continua caminhando até o sofá. Acho muito engraçado a atitude espontânea e inesperada dela. Ela tinha nas mãos uma garrafa de vinho. Senta-se e começa a conversar com um senhor que está ao seu lado. Assim que acabo a conversa com o Filipe, sento-me em outro sofá e começo a conversar com meus mais novos amigos. Lembram-se de um senhor, no albergue de ontem, que ficava observando eu falar com o Filipe, como que tentando entender o que eu dizia? Pois bem, o senhor que falava com tal moça loira era exatamente ele! Assim que começo a 'tentar' rasgar meu excelente inglês, ele se adianta e diz: 'Fale em português, bem lentamente! Estou fazendo um curso a algum tempo e entendo alguma coisa'. Vibro com isso! Começamos uma deliciosa e longa conversa. Os dois são irmão e vieram fazer o caminho com seus filhos adolescentes. Fico maravilhada com a história deles e depois, é claro, querem saber o porque ontem eu chorava ao falar com o Filipe. Eu dei risada e disse: 'Vocês tem tempo? A história é longa...' Kim (a moça loira) pediu para eu aguardar, levantou-se e me trouxe uma taça, para que eu pudesse beber vinho com eles... aliás, era um La Rioja! Tivemos uma maravilhosa conversa até umas 23h... algo muito incomum aos peregrinos que devem estar na cama no máximo às 22h. Kim e Kurt são alemães também (aliás, têm muitos alemães pelo caminho)... 


Um brinde ao meu maravilhoso dia!!


4 comentários:

  1. agora esta ficando melhor ja parei de chorar!!!!!!

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  2. Claudia, sempre que comento sobre caminhos, digo que são outros mundos, onde as pessoas se ajudam, há solidariedade, parece que todos se conhecem há muito tempo, diferente de nossa vida real. Você teve a prova disso...
    Sua narração, depois de um ano, cheia de detalhes é comovente! Mais uma vez, parabéns pela coragem em continuar e pelo brilhantismo das palavras...

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    1. Poxa Elim, obrigada! Mais do que apenas acompanhar esta narração, tenho certeza de que sabe exatamente do que estou falando!

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