quinta-feira, 9 de outubro de 2014

06/06/2013 - 1 dia - Saint Jean Pied Port (França) a Roncesvalles (Espanha)

Detalhes dos locais visitados hoje: 

Saint Jean Pied de Port / França - divisa com Espanha. 
Cidade construída em 1628 com 2000 habitantes. 
Oficina dos peregrinos - Rua La Citadelle, Nº 44 (carimbar a credencial e pegar a concha vieira). 

Provincia de Navarre
25 km - Roncesvalles / Espanha  
Cidade construída em 1132




Diário de bike


Dormi razoavelmente bem. Logo no primeiro dia, percebi que teremos um relógio natural, pois os peregrinos saem muito cedo. Fiquei observando dois senhores se arrumando e, de repente, um deles tirou suas calças e ficou apenas de cueca. Enquanto isso, o outro passava a máquina de fazer a barba pelo rosto. Por um minuto parei de olhar pois senti que estava invadindo a privacidade deles. Levantei e comecei a arrumar as minhas coisas. Vesti a camiseta que meu noivo mandou confeccionar em Portugal. Ficou simplesmente divina! Quando descemos, observamos a mesa posta com tudo o que se pode imaginar! Foi com certeza o melhor café da manhã que tive, durante o Caminho de Santiago. Após o café, aproveitamos para trocar emails com o pessoal. 




Me sentia radiante! Pegamos nossas tralhas e começamos a nos preparar para sair, mas não antes de pegar nossos carimbos do albergue e nos despedir dos peregrinos. 





Me sentia 'A aventureira', super experiente! O único problema, é que isso era mesmo só na minha 'cabeça' pois as únicas experiências que havia tido, de viagem sobre uma bicicleta, não ultrapassou dois dias inteiros, como indo de São Miguel a Ilha Cumprida (160 km) e Ubatuba a Trindade (60 km). Começamos a montar os alforges na bike e ficou claro que precisaríamos passar no correio para despachar algumas coisas. Me arrependo de não ter montado a bike com os alforges em casa, para ter noção de como ficaria. Para que o fator 'absurdo' ficasse bem claro, antes mesmo de partir, devido ao peso meu alforge estoura um rebite, justo onde fica o sistema de fixação do suporte da bike, e cai. Por sorte conseguimos substituí-lo por um parafuso que tínhamos em nossas coisas. Na sequência, fomos direto ao correio. 






Quando chegamos nos correios, percebemos que não somos os únicos a errar na quantidade de coisas. Várias outras pessoas estão fazendo o mesmo. Começamos o pedal oficialmente às 10 hrs. Apesar de termos saído tarde, vejo o lado bom (como sempre) que o sol está alto, quentinho e confortável. 

Agora é hora de dizer adeus a Saint Jeant e enfrentar a subida dos Pirineus.




O início é punk! São 20 km de subidas que saem de 200m e só terminam em 1500m de altitude. Inicialmente é asfalto mas logo começam as subidas em estrada de terra e depois trilhas.




A inclinação é muito forte! Aliado a isso, com o peso dos alforges, fica impossível pedalar. Minha colega está na mesma pegada, por isso, o marido dela sobe a bike dele e depois com a dela. Enquanto isso, nós duas, subimos caminhando.


É engraçado que, como não estou conseguindo pedalar direito, começo acompanhar uma peregrina. Ela é a primeira peregrina que posso observar e vejo que, apesar de estarmos no início, está cansada. Olho para ela, sorrio e tento puxar papo. Ela é americana. Tento usar meu inglês ridículo, ela até se esforça para entender, mas acaba desistindo. Por isso, passamos apenas a nos olhar e sorrir uma para a outra durante a subida e eu "acho" que logo estarei longe dela... 




A coisa só piora durante os próximos quilômetros. A única alternativa que temos é continuar nossa caminhada aproveitando para fazer algumas fotos vez por outra pois, apesar da dificuldade, o visual é mesmo de tirar o fôlego.



 Momento piadinha do dia:


Logo após esta foto, havia uma árvore e alguns peregrinos descansando. Aproveitamos para fazer o mesmo durante alguns minutos. Olha a visão aqui de cima... é mesmo incrível!







Olha a inclinação dos peregrinos passando a nossa frente.


Falei que a camiseta que meu noivo havia feito era linda... veja os detalhes, tem até o mapa na parte de trás. Por vezes fui indagada por peregrinos onde tinha comprado. 



Á partir daqui, a inclinação diminui um pouco e consigo pedalar novamente. Meus colegas ficam para trás, mas não os perco de vista. Na verdade, até gosto da ideia de estar a frente, assim posso fazer muitas fotos.



Esta foto foi tirada por um peregrino. Quando passava por mim, pedi que fizesse a foto. Em pé, mirou e clicou. Ai eu disse: Nãooo, por favor, abaixe-se! Quando ele tentou se inclinar, com todo aquele peso na mochila, se desequilibrou e caiu. Levantei correndo para ajudá-lo. Pedi desculpas, mas ele apenas riu e disse que não tinha problema. Voltei ao lugar onde queria a foto e o resultado foi este... uma das minhas preferidas do dia!



A subida continua, mas agora temos asfalto, o que facilita muito para a bike.




De repente, Luiz e o marido de minha colega passam por mim e seguem na frente... olho para trás e vejo que ela está bem ao fundo. Paro e espero. Quando ela me alcança diz que não está nada bem, desce e começa a empurrar a bike. Olho para cima e não os vejo mais. Por um instante penso: 'E agora? E se ela passar mal aqui?' Digo a ela que tentarei alcançá-los, mas sinto que ela não fica confortável com o que digo, por isso, decido descer da bike e apenas empurrar junto com ela. Tento puxar papo, distraí-la, mas é em vão. Pergunto se ela não quer comer algo, assim quem sabe se sentirá melhor. Encostamos a bike e nos sentamos no chão, curtindo um belo visual e jogando conversa fora.



Assim que ela me diz estar melhor, levantamos e partimos. Digo a ela para não se preocupar pois seguiremos o pedal no nosso ritmo, fazendo fotos, conversando, comendo e nos divertindo. Já estamos chegando no topo e aqui é difícil de descrever. Foi o lugar mais marcante que pedalei até hoje!  Aquela cadeia de montanhas, agora tão pertinho, não parece realidade.



Acabamos encontrando novamente aquela peregrina americana e desta vez, descubro seu nome: Ângela. Ela está sentada no chão, com dores no pé. Ajudamos ela a tirar o tênis, passamos 'gelol', que minha colega tinha no alforge, e sugerimos que ela colocasse meias e 'papete'. Ela aceita a sugestão, levanta e diz que melhorou muito. Nos agradece e continuamos o caminho. Me sinto ótima por ter conseguido ajudá-la. Na sequência, somos premiadas com uma visão de uns animais pastando livremente. É simplesmente demais! 






Há algumas nuvens 'pesadas' nos acompanhando no céu e confesso que as mesmas encontravam-se em minha cabeça... afinal, cadê o marido de minha colega? Pensava comigo, será que ele já chegou em Roncesvalles, será que está bravo com nossa demora, porque não voltou para nos procurar para saber se estava tudo bem... mas logo, não me permitia continuar com estes pensamentos, afinal, estávamos bem, tínhamos a companhia uma da outra e minha colega, graças a Deus, já sentia-se melhor. Por isso, espantava as nuvens pretas de meus pensamentos para longe e curtia o visual. 

Subimos um pouco mais e logo vimos outros animais soltos. Na sequência, passamos novamente por Ângela.







O caminho é muito bem sinalizado. Eu não me preocupei com mapas ou guias, tínhamos apenas as setas para nos guiar e é o que bastava!


Passamos por estes dois ciclistas, italianos, divertidíssimos! Falam 'pelos cotovelos' dão risada o tempo todo, mesmo empurrando a bike. Nos cumprimentam e a partir daqui passamos por eles, logo após eles passam por nós... continuamos assim até chegar a Roncesvalles.


Neste ponto, boa parte dos peregrinos estão com cara de poucos amigos, devido a grande dificuldade deste primeiro dia... É possível ver dor em suas feições. Quando falamos 'Buen Camiño' a resposta nunca soa empolgada. Tenho pena deles, queria poder ajudar de alguma forma. 

No dia anterior, conhecemos um casal de brasileiros em Saint Jean Pied Port, mas não gostei muito deles. Acabamos reencontramos eles nos Pirineus e agora a mulher está muito brava. Quando a ouço dizer que o caminho nem vale a pena e nem é tão bonito, devido a dificuldade, pedalo o mais rápido que posso para que fiquem para trás. Como pode alguém se sentir amargurado neste lugar maravilhoso? Sinceramente... 

Quando chegamos na fonte que Carlos Magno construiu, encontramos novamente aqueles dois ciclistas italianos. Eles nos contam com uma empolgação incrível sobre os detalhes da construção desta fonte. Não entendo metade do que falam, mas é tão lindo aquele sotaque que finjo entender, balanço a cabeça confirmando tudo e dou risada quando eles sorriem. Após, aproveito para fazer algumas fotos.





Olha a lápide ao lado da fonte, com a quilometragem que falta até Santiago de Compostela:




A Espanha é dividida através de províncias. Vamos atravessar várias pelo caminho. Neste momento, acabamos de entrar na província de Navarra.





Á partir daqui, entramos em uma floresta deslumbrante. Nunca vi nada igual... como a primavera iniciou a pouco tempo, começa a ter vida... ao mesmo tempo, há muitas folhas pelo chão... pedalamos durante muito tempo com esta visão. 



Soubemos por um peregrino, que estamos próximo a um marco onde um brasileiro foi encontrado morto, dentro de sua barraca. Acho que ele teria vindo em uma época de frio e a temperatura caiu muito a noite. Ele morreu de hipotermia. Acho aquilo tão forte que pedalo por horas pensando na morte terrível deste pobre homem... 



Passamos por um ponto de apoio ao peregrino. Há várias pessoas lá dentro, comendo, sentadas descansando. Mas decidimos continuar. Acho que nós duas estamos muito preocupadas por estarmos a tanto tempo sem ter notícias do marido dela. 

Logo a nossa frente, vejo um menino, adolescente, que está deitado no chão com uma cara de poucos amigos. Pergunto se ele está bem, se tem comida. Ele responde com um ar de: "não encha o saco", que estava tudo bem. Fico com pena dele. Será que a ideia de fazer o caminho foi mesmo dele ou será que foi obrigado a estar lá?!?





Encontramos umas peregrinas japonesas que são uma graça, devem ter algo entre 60 e 70 anos... Mesmo caminhando com uma grande dificuldade, elas estão dando risadas, mexem com agente, tiram fotos. Gosto delas! É uma pena que eu não tiro uma foto delas...

Minha colega comenta que gostaria muito de ver neve e de repente encontramos um pico de uma montanha, bem longe, que ainda tinha. Por isso, paramos para umas fotos.




Voltamos a pedalar e de repente mais uma surpresa boa, ainda tinha neve em um canto da trilha. Chamo-a para perto de mim para fazer um 'selfie' de nós duas na neve. Assim que faço a foto, acho interessante o comentário que ela faz, sobre meu comportamento ao tirar a foto. Eu nunca peço para que alguém tire uma foto de mim e sim, peço para que a pessoa se posicione mais perto para que eu tire uma foto do 'grupo'. Ela comenta que não sou egoísta, que não quero ficar sozinha. De fato, quando olho as fotos desta parte inicial da viagem, são pouquíssimas que estou sozinha... Por isso, faço uma foto 'padrão', com ela, e na sequência peço então que tire uma foto apenas de mim...




Não tenho a menor noção da hora, mas acho que devem ser umas 16 horas. Decidimos parar novamente para comer pois acabamos de reencontrar aquele cara de Istambul, da oficina de peregrino. Com ele meu inglês funciona melhor porque ele fala também fala espanhol e muitos outros idiomas. Então vamos falando, fazendo mímica, mudando o idioma, até entendermos um ao outro. Ele me explica que faz parte de alguma denominação religiosa que idolatra a natureza e, por isso, nesse momento ele parou para contemplá-la. Oferecemos algo para ele comer. Ele aceita apenas um pedaço de pão 'seco'. Não quer o Ramón, pois ele não come carne. 



Novamente começo a pensar no 'sumiço' do marido de minha colega e ela também faz um comentário... Acha estranho que ele esteja a tanto tempo sem aparecer... De repente, eles aparecem atrás de nós, resmungando muito. O marido dela afirmou conhecer o caminho e teriam pego um atalho. Após 10 km, o autor do atalho soltou a pérola: ops, acho que não era por aqui! Rimos muito da historia. Sinto-me mais aliviada, pelo menos agora está tudo bem... estamos todos juntos novamente, como deve ser! Eles comem como dois porcos esganados após terem passado sede e fome quase o dia todo...



Na sequência, passaram por nós, novamente aqueles dois italianos divertidos. Estes dois homens, muito abençoados, nos avisaram para não pegar o caminho dos peregrinos, pois havia uma grande e longa descida de cascalho que chegaria no mesmo ponto, em Roncesvalles, e era mais rápido. Fizemos conforme a dica deles e realmente foi perfeito! Olha a cidade lá embaixo.





Partimos todos, meio juntos... Quando estamos quase na cidade, meu alforge arrebenta outro rebite e cai em uma curva. Novamente conseguimos colocar mais uns parafusos mas é visível que isso não será suficiente para segurá-lo.






Chegamos na cidade e decidimos ficar aqui, embora nosso objetivo fosse seguir até Zubiri. Entramos no primeiro albergue. Eu imaginava uma coisa mais medieval, mas ele é tão moderno. Apenas mais tarde soubemos que havia outro com tal característica.










Novamente, observo a naturalidade com que as pessoas trocam de roupa na nossa frente. Eles tiram a calça, a blusa, ficando apenas com a roupa intima. Aqui tenho minha primeira lição de desapego. Deve ter uns 80 peregrinos neste andar, nas camas ao lado. A primeira coisa que penso é, vou sair e deixar minhas coisas aqui? E se alguém mexer? Bom, após o banho, respirei fundo e sai com meus amigos, sem olhar para trás. Fomos para a cidade, encontramos um bar e tomamos um Chop  para comemorar nosso primeiro dia como 'bicigrinos'. 




Aqui estão vários peregrinos que  concluíram a primeira etapa do caminho. Vejo novamente Tony, um peregrino que saiu conosco hoje cedo, do mesmo albergue em que estávamos em Saint Jean. Conheci também, um rapaz que está fazendo o caminho de cadeira de rodas, utilizando um tipo de pedal que é rotacionado através das mãos. Ele e a irmã farão o caminho juntos... é uma pena que não posso ficar e conversar mais com eles.




Assim que nosso chop termina, partimos para um passeio pela cidade. Tiramos uma foto, em um ponto, que praticamente todos que passam por aqui também farão!



Decidimos tentar encontrar pão mas não encontramos nenhuma 'tienda' por aqui. Passamos em um albergue, que tinha um restaurante, para perguntar se havia pão para vender. Não encontramos o pão, em compensação reencontrei minha primeira peregrina, Ângela, que me abraçou com um carinho difícil de se explicar. Tiramos mais uma foto. 



É engraçado a sensação de cada reencontro com um peregrino que tivemos algum contato... é como se estivesse revendo um velho amigo. Pena que ela está em outro albergue e não pode jantar conosco. Nos despedimos, sabendo que provavelmente será o último adeus.


Voltamos ao Albergue para fazer nosso jantar e decidimos que o 'menu' será um risoto de tomate, cebola e alho, que fica muito bom por sinal... a mistura será ovo frito. O cheiro está bom, e vários peregrinos passam por lá com carinha de famintos, inclusive o Jacob. Convidamos para jantar conosco que aceita na hora... Ele diz, que em suas crenças, o alho é sagrado e cura tudo, por isso quando vê que temos alho para comer fica extremamente feliz e pede um dente de alho para ele. Ele prepara sua salada. Prato, garfo, nada pode ser de metal, apenas plástico ou madeira. Peço para comer um pouco de sua salada e ele divide com muito carinho. Converso muito com ele, rimos e nos divertimos num inglês/espanhol/mímica que acredito não ser compreendido por mais ninguém. No final de sua refeição, o alho é degustado como se fosse a melhor das iguarias. Ele fecha os olhos e come com uma cara de satisfação que merecia ser filmada. Mas a hora está passando muito depressa. Aqui, precisamos estar na cama exatamente às 22 hrs, pois as luzes do grande alojamento se apagam. 




Bora dormir para aguentar mais um dia do Camiño amanhã...

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